sábado, 28 de fevereiro de 2009

O público e o privado na dança árabe: o caso da dança do ventre

O público e o privado na dança árabe - o caso da dança do ventre

Conforme eu disse na postagem anterior, na cultura árabe fica muito claro o que é considerado publico ou privado. Estendendo esta reflexão para a dança, vemos que pode haver muita confusão a respeito disso, caso esta questão não seja considerada pelos praticantes da dança, ou mesmo pelo público. Vamos tomar como exemplo a RAKS SHARQI (dança oriental), uma das mais conhecidas e divulgadas fora dos países árabes.

Pouco se sabe a respeito da história da dança oriental - a chamada dança do ventre -, pois muitos registros se foram junto com as antigas civilizações. O que se tem certeza é que é uma dança feminina que teve sua origem na antiguidade em rituais sagrados de fertilidade, que eram praticados por diversos povos. As mulheres dançavam pedindo a fertilidade de seu corpo e também da terra, numa época em que família numerosa e terra generosa eram sinais de saúde das pessoas e da sociedade, e garantia de sobrevivência do grupo.

DANÇANDO EM SITUAÇÕES ÍNTIMAS - O PRIVADO
As danças feitas apenas entre mulheres e para mulheres utilizavam movimentos sinuosos, arredondados e espiralados, que simbolizavam o feminino. A percepção de seus benefícios para a saúde física e psíquica feminina despertaram o interesse em adaptar estes movimentos, a princípio utilizados para conectar-se ao divino através do feminino, para serem usados em outras situações da vida.

Estas danças de caráter sagrado acabaram sendo conhecidas e dominadas por muitas mulheres, que começaram a praticá-las em situações totalmente privadas, com seus maridos, com o objetivo de aumentar a intimidade, melhorar a qualidade da vida sexual, aumentar a fertilidade e favorecer o bem-estar no período da gestação.

Até hoje é comum encontrar em lojas do Oriente Médio roupas de dança do ventre bem insinuantes, para serem usadas na lua-de-mel ou em outras noites íntimas. É considerado natural e desejável que uma mulher saiba dançar para seu marido. Um exemplo que aparece em um filme exibido recentemente, "O segredo do grão", é o da garota que sabe dançar de forma bonita e insinuante. Ela aprendeu a arte em casa, com outras mulheres da família e a pratica para mostrar um pouco nas festas, e bastante em situações particulares. Voltarei a falar deste filme mais adiante.
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DANÇANDO ENTRE FAMILIARES E CONHECIDOS - O SEMI-PÚBLICO
Uma das formas mais comuns é que seja praticada em ambientes semi-públicos, entre familiares, como manifestação de alegria. Estas danças feitas em casa ou em festas familiares são executadas por mulheres da própria família ou amiga próxima, como uma brincadeira entre conhecidos. Aqui se faz movimentos parecidos com a dança do ventre, mas o repertório de passos é menor e estes são executados de forma mais sutil e descontraída.










Todos participam e gostam de mostrar seu jeito de dançar. Os homens dançam com as mulheres, brincam com elas, rendem-lhes homenagens. Às vezes uma mulher mais habilidosa é chamada para dançar em festas especiais, mas tudo num clima descontraído e familiar.

DANÇANDO EM TEATROS, RESTAURANTES E FESTAS - O PÚBLICO
Um dos enganos de hoje é levar este tipo de dança, sem qualquer alteração, para ambientes públicos e com pessoas desconhecidas, como boates e restaurantes. Em locais como esses, a bailarina deveria fazer seu show num local específico para este fim e só ir para perto das mesas se o salão fosse grande, para estar mais próxima e brincar um pouco com o público. É muito diferente da descontração das festas caseiras, onde se brinca com pessoas que você convive desde que nasceu e todos conhecem e respeitam quem está dançando. A bailarina, no caso das danças em locais públicos, deixa de ser uma familiar que gosta de dançar para se transformar em uma artista.






Outra maneira de se apresentar, muito comum no Oriente, na Europa e nos Estados Unidos são os shows em teatros e casas de espetáculos. Assim como existe, na música, a animação de festa e o espetáculo musical, nos quais todos se sentam para apreciar o show, na dança também temos estes dois tipos de apresentação. Infelizmente, no Brasil, os espetáculos em teatros ainda são raros e poderiam mostrar todo o potencial desta dança hoje restrita a restaurantes e festas.



Como em outras manifestações cênicas (teatro, música, etc), a dança feita em teatros é proveniente das manifestações populares, só que com muito mais precisão e elaboração dos movimentos. Assim como o ator não fala numa peça teatral da mesma forma que fala em casa, num espetáculo de dança não se faz o movimento como se faz em casa. A função do espetáculo cênico não é imitar a realidade e sim extrair a essência dela e transformá-la em expressão artística.

E se não se dança num teatro como se dança em casa, quando se dança numa festa mais descontraída é melhor fazermos movimentos menores, que estabeleçam uma comunicação mais próxima e também que sejam adequados ao espaço, já que estamos dançando com os outros, e não fazendo um show para eles.


E numa situação a dois, vale o que for o mais íntimo possível: é o momento da liberdade de movimentos, da cumplicidade, da imaginação, do explorar juntos. Tudo muito diferente das situações acima, não?


SECRETO E SAGRADO

Mesmo que os movimentos sejam parecidos, quando a intenção ao dança muda, o gesto também muda. Numa situação de intimidade, fazemos movimentos mais insinuantes, que denotam cumplicidade e muita sensualidade. Numa situação familiar, os movimentos são soltos, brincalhões, mostrando a habilidade e o charme, mas já mantendo algo em segredo...

Já numa situação pública, a performance é a de uma artista profissional: os movimentos são mais desenhados, denotando técnica, charme e sensibilidade, levando o público a ouvir a música de uma forma única, marcada pela personalidade da bailarina. Ao confundirmos estas situações, podemos perder muito do que a dança pode nos oferecer.

Voltando ao filme "O segredo do grão" (foto ao lado) e abstraindo o que a direção pretendia com esta cena: vemos que a garota faz uma performance muito comum em situações a dois, mas que diante do público se torna exagerada e vulgar.

Não dá para fingir intimidade com quem não se tem. Isso tem feito com que esta dança seja sempre vinculada apenas à sensualidade, à disponibilidade da mulher. Mas ela tem muito mais a oferecer!

A beleza e o poder de atração da mulher que dança pode estar em muitas formas de expressão: num sorriso que se abre devagar, num movimento forte e direto, em um giro de liberdade, na doçura de um olhar, nas mãos que abraçam o ar, no domínio ao mexer cada parte corpo. E no mistério por trás de tudo isso.

É possível reviver a origem sagrada, onde algo se mantém secreto.

7 comentários:

  1. Bravo Márcia!!!!! Adorei este texto, diz tudo o q as bailarinas deviam saber. Gostei tb pois ouço muito comumente q o tsiftetelis (o estilo grego da dança oriental) não é dança do ventre pois os movimentos são limitados e várias outras observações, sempre tento explicar o q vc fez com maestri, q existe uma gde diferença da dança popular q se dança por qql um dentro de sua cultura da dança profissional. Mas..., enfim é difícil p o povo entender!!!rsssss Mil bjssssss
    Cris

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  2. Nossa, garora, esse espaço aqui é muito bom! Como é que eu não tinha visto antes?
    Parabéns! Tô linkando!

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  3. amei! como descendente de libaneses posso afirmar que é isso. Bom estudo a todas. Salimi Mehanna

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  4. Sensacional Márcia! Como sempre! Beijos, Rhazi

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