sábado, 24 de janeiro de 2009

Mabruk!, um diálogo através da dança




“Mabruk!”,
um diálogo através da dança


Uma viagem a passeio ou estudos para a Síria nos mostra a riqueza de sua história e a diversidade de lugares, costumes, manifestações sociais e culturais. Conforme relatado em artigo anterior – “A massificação cultural ameaça também a Síria” – é preocupante que estas expressões estejam se diluindo no caldeirão da “globalização”, transformando toda manifestação cultural em cópias mal-feitas da ocidental ou, mais especificamente, da americana. Não se costuma dar a devida atenção à dominação cultural, tudo é visto como natural: “todos fazem assim”. Uma pena...

É importante que exista o diálogo entre as culturas e, como se sabe, os diálogos mais saudáveis e frutíferos são aqueles em que as partes envolvidas têm seus próprios argumentos, igualmente válidos e respeitados como tal. Só assim é possível haver troca. De outra forma, se uma das partes envolvidas entra no diálogo como dona da verdade, se cria uma atmosfera de dominação e submissão. Essa atmosfera é comum entre países colonizadores e colonizados, e estes últimos geralmente abrem mão dos próprios valores, passando o diálogo a ser, ao invés de troca, substituição ou eliminação de idéias.
Em função dessa ameaça, viu-se a necessidade de pesquisar e divulgar as manifestações artísticas da Síria e, posteriormente, de outros países de cultura árabe. Pois essa massificação cultural atinge vários lugares do mundo, e não apenas a Síria.

Foi escolhida a dança como veículo de expressão cultural. Sabe-se que a dança vai muito além dos passos em si: ela diz muito sobre a cultura, os costumes, os movimentos escolhidos para cada situação, a postura adotada em cada região, as músicas utilizadas, os modelos das roupas, as cores. A dança folclórica é uma expressão do modo de vida de uma comunidade; é mais uma conseqüência do que uma causa. Pela dança podemos aprender muito sobre um agrupamento sociocultural.

O grupo “Mabruk! Companhia de danças folclóricas árabes” – foi então criado a partir dessa necessidade, com o objetivo de estudar a dança nesse contexto mais amplo, trabalhando no sentido do resgate e da divulgação dessa rica cultura. A intenção é ser uma ponte, uma via de comunicação e troca com as terras ditas árabes.
O grupo, ainda jovem, tem tido excelente aceitação do público em geral e a análise desta aceitação nos leva para outra necessidade: a do público, de entender melhor essa cultura, tão deformada pela mídia. Esse público recebe a dança e, junto com ela, a mensagem de que os árabes não são aqueles “bárbaros, rudes e ignorantes, que trancafiam e mutilam mulheres”. A dança pode levar ao público a mensagem de riqueza cultural; dos gestos ora delicados, ora firmes; de sutileza musical; de capricho nas formas e cores das roupas.

Essa mensagem não-verbal pode atingir ainda mais as pessoas, exatamente por não passar apenas pela razão. O grupo apresente em movimentos e música o que as palavras nem sempre conseguem expressar. Os vários sentidos estimulados propiciam uma experiência rica, uma percepção diferenciada e, com isso, consegue-se comunicar uma cultura muito mais elaborada e cheia de nuances do que se costuma divulgar como árabe.
Todas estas ocasiões servem para reafirmar os objetivos do “Mabruk!”, que são pesquisar, discutir e divulgar, “engrossar o caldo” do conhecimento em relação a essa cultura, para que os diálogos deixem de ser unilaterais, para que as pessoas tenham mais formação e informação a respeito dos árabes em geral e para que possam existir trocas verdadeiras a esse respeito.

Mabruk (lê-se mabrúc) é uma expressão em árabe que significa um tipo de “Parabéns”, porém embebido em bênçãos. É usada quando algo novo se inicia – um casamento, um comércio, uma casa, um empreendimento. Então, deixa-se aqui um “Mabruk!” para todas as iniciativas no sentido de dissipar o véu do preconceito e ignorância em relação à cultura árabe.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Música árabe: expressividade que vem da sutileza

Música árabe: expressividade que vem da sutileza


Na palestra "Música árabe", dada no Clube Sírio em junho de 2007, com apoio de seu Núcleo de Cultura Árabe (esta mesma aula já havia sido dada no curso Panorama da Cultura Árabe, promovido pelo ICARABE em 2006), o público, acostumado a ouvir música árabe em casa e nas festas, foi bastante participativo, ajudando na reflexão sobre um tema tão fascinante.

A aula começou com um passeio por várias sonoridades árabes e o público logo percebeu a diversidade existente. Os sons identificam as tradições de um povo: a escolha de determinados sons, ritmos e instrumentos, é ligada intimamente à sua cultura e da organização social. Sabemos que o mundo árabe é bastante heterogêneo, logo sua música também é um mosaico. Apesar dessa diversidade, algumas características são comuns a quase todas as músicas produzidas pelos árabes.

A primeira, comentada pelos ouvintes, foi que as músicas lembravam canções de roda, cantigas de ninar. Isso acontece por seu caráter circular: as frases musicais se repetem, girando em torno de algumas notas. A repetição envolve as pessoas, gerando outro padrão interno. Então, quem está dentro se envolve, como uma criança num balanço...

Não passou despercebida também a importância da palavra. Toda a música árabe é baseada na palavra e na forma de pronunciá-la. A linha melódica imita a voz humana: não existem grandes saltos na altura das notas, as frases são ditas com as mesmas inflexões e ritmos das palavras. Versos e melodias estão totalmente associados.

Se a palavra é tão importante, é natural que todos os que estejam executando a música “digam a mesma palavra”, ou seja, que toquem as mesmas notas. Todos os instrumentos executam a mesma linha melódica, os músicos estão intimamente ligados à palavra ou à melodia que querem expressar juntos. Logo alguém da platéia lembrou daqueles maravilhosos improvisos, sejam vocais ou instrumentais, e perguntou como isso poderia acontecer se todos têm que fazer a mesma coisa. Acontece que na música árabe existe o momento da união, mas também o momento da liberdade: podem ocorrer improvisos entre duas frases ou mesmo no meio delas. Esse jogo enriquece a música.

Outra pergunta dos ouvintes: por que a música árabe soa tão diferente da música ocidental? A principal razão é que a música oriental possui mais notas que a ocidental. Existem notas além das que nos acostumamos a ouvir; notas intermediárias. A princípio, nossos ouvidos estranham, mas logo se acostumam com estas sonoridades, que possibilitam maior complexidade e riqueza. Uma pessoa da platéia lembrou do pai de olhos fechados, se deleitando com músicas maravilhosamente bem trabalhadas. Isso ocorre porque a música árabe pode gerar estados emocionais e espirituais, por causa da forma de utilização dos sons: a chamada musicoterapia já era conhecida entre os árabes e muitos outros povos da antiguidade! Esta música acontece sobre um ambiente sonoro, ou seja, trabalha em torno de uma seqüência de notas (chamadas modos ou ajnas) que produz efeitos sobre o ser humano. A combinação destes modos, que gera uma “escala” (maqam), tem nomes que dão uma noção de seu uso: o amigo, o outono, a brisa, o que abre o coração, a alegria, a gazela, a que parece com a lua, etc. Na verdade, a maqam tem características que vão muito além da seqüência de notas, mas isto é um assunto para outro texto...

Outra característica importante que gera este “maravilhamento” é que a música árabe ainda utiliza a chamada afinação natural, baseada na vibração das cordas dos instrumentos. Os sons produzidos por essas vibrações emitem freqüências que se harmonizam com as do ser humano, produzindo um grande bem-estar. Sentimos-nos “em casa”. Esta afinação foi também utilizada pelos ocidentais até o início do século XVIII, quando surge o sistema temperado. Todas as notas passam a ter o mesmo valor - as mesmas distâncias -, acabando com as nuances da afinação natural, onde os sons eram produzidos pela vibração de uma corda dividida em partes e não a partir de um valor matemático. Essa mudança foi fruto do racionalismo, que rejeitou vários aspectos das artes e ciências existentes. A música ocidental passou também por isso e perdeu muito com estas alterações.

Muitos músicos árabes contemporâneos continuaram produzindo música com sua riqueza e complexidade; mas alguns optaram por trabalhar com instrumentos temperados, o que reduz muito o campo sonoro. Poucas maqamat podem ser tocadas em instrumentos temperados, pois estes possuem menos notas e poucas possibilidades de trabalhar a sutileza existente nas músicas árabes. Existe o risco de estes músicos não saberem mais trabalhar com estas características, o que seria uma perda muito grande.

Felizmente existem muitos músicos árabes de excelente qualidade que estão empenhados em expressar e passar adiante este conhecimento, que exige muita dedicação, estudo e empenho. Mas exige, principalmente, um ouvido atento e um coração aberto, para que estes sons toquem sua alma e assim se possam produzir lindas melodias para o mundo.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

A massificação cultural ameaça também a Síria

A massificação cultural ameaça também a Síria

Sou bailarina e pesquisadora das danças árabes e, como descendente de sírios, decidi viajar para lá para aprender a dança folclórica. Achei que na Síria, País que se resguardou mais, eu poderia encontrar a memória mais presente. Mas percebi que existe bastante influência da cultura ocidental, principalmente na capital. Talvez no interior as coisas sejam diferentes, mas como chegar num lugar, mulher ocidental, sozinha e desconhecida para eles, e falar: “oi, quero aprender essa dança com vocês”? Então fiquei estudando em Damasco, onde já tinha amigos e alguns contatos no meio artístico.

Na dança, essa influência se nota na excessiva mistura de balé clássico, jazz e balé moderno ao folclore. São modas ocidentais que vão sendo incorporadas; o mercado força os grupos a fazerem isso. Em geral, isso acaba despersonalizando e massificando a dança. O balé clássico, por exemplo, na sua busca da leveza e uso delicado das estremidades do corpo, não tem nada a ver com o povo e a cultura árabe, que é bem forte, emocional, ligada à terra.

Assim a dança do mundo todo vai ficar toda com a mesma cara, a ocidental e, mais provavelmente, a americana! Ninguém percebe que isso é dominação cultural e artística? Será balé moderno com música e figurino árabe, ou coreano, ou espanhol, mas sempre balé moderno, ou qualquer outra moda do momento. É o que “todo mundo está fazendo”. Só que o folclore é eterno, perpassa esses modismos e deveria se manter lá, vivo e sempre renovado, para ser uma fonte de inspiração, para quem faz e para quem vê, pois se reconhece naquilo como povo, que tem sua história, sua cultura e arte, seu jeito de se expressar e que é tão rico. Isso deveria ser motivo de orgulho, e não de vergonha. Somos diferentes e isso é uma grande riqueza, pois podemos ver e conhecer vários modos de ser e de se expressar, mas mantendo o nosso.

Mas hoje na Síria já é muito difícil encontrar alguém que conheça os vários tipos de dança de cada cidade, que queira e saiba ensinar, que ache isso importante. Também é difícil ter acesso às músicas, as lojas olham torto “ah, mas isso é muito antigo, você não quer ver o novo lançamento desse cantor pop?” . Não tenho nada contra o pop, mas substituir um pelo outro, invalidar o que é nativo, é uma atitude típica de País que foi colonizado por muito tempo: o que é nosso não tem valor, o do outro é sempre melhor. Já vimos (e ainda vemos) esse “filme” no Brasil, e agora acordamos para o perigo disso: as danças brasileiras estão sendo estudadas nas universidades e em vários grupos de trabalho. Tomara que a Síria acorde logo!

As pessoas tratam a memória como se fosse passado e não como memória viva e contínua. Como diz um amigo meu, a coisa mais revolucionária que temos é a Tradição, porque lida com a essência, é a fonte onde eu bebo para dar um passo adiante, e que vai sendo sempre atualizada. É diferente da conservação, que vê que “funcionou assim, então eu paro aqui”, nunca dá um passo adiante...

O diretor do grupo de dança folclórica no qual estagiei, o Ali, viveu esse dilema enquanto eu estive lá. Ele não me parecia convencido, mas sim, empurrado pelo “mercado”, o fantasma que ronda a arte hoje em dia, transformando-a em objeto de consumo. E o fato de ter uma pessoa, vinda de tão longe para conhecer a dança DELES, também o levou a questionar tudo isso e assim voltar a criar coreografias com movimentos bem árabes, mas nem por isso fáceis ou bobinhos. Ele dizia que o folclore deve se expressar por meio de gestos que representem o caráter árabe, que é emocional, passional, e tem o momento apaixonado, o guerreiro, o doce, etc, e que tudo isso deve estar presente desde que respeite o modo do árabe se movimentar que, com certeza, não é saltitando por aí. E assim criou peças folclóricas de muita riqueza e beleza!

Foi muita sorte encontrar esse diretor e também a Afaf , uma bailarina já madura, que aprendeu as danças como elas são, as atualizou, mas tenta sobreviver hoje dando aulas de aeróbica! Ela ficou feliz em saber que alguém ainda se interessava e me ensinou as danças de várias regiões, o porquê dos movimentos, a teatralidade, o caráter de cada lugar. E outro achado foi o Husam, um professor de música que me ensinou a característica da música de cada cidade, como diferenciar (eu achava esse aprendizado imprescindível, para não sair por aí dançando frevo com música gaúcha) e reconhecer. Todos esses contatos foram para mim como tesouros, encontrados depois de muita insistência e procura. Assim minha viagem não foi em vão e pude voltar com a certeza de que acompanhei processos bonitos e intensos de busca das raízes. Raízes que nos apoiam para podermos crescer, e não para ficarem lá, esquecidas e afundadas, inertes.

Apresentação

Olá, amigos!
Gostaria de fazer deste um espaço para falarmos sobre alguns aspectos da cultura árabe.
Esta é uma cultura tão rica quanto desconhecida para nós. Muitas das informações chegam de forma deturpada, permeadas de preconceitos, aumentando as chances de termos uma visão equivocada ou empobrecida.
Quando se fala sobre uma cultura aparentemente distante, é importante observar como cada aspecto dela se relaciona com o todo, para evitar o risco de fragmentar a experiência cultural. Muitas vezes é preciso analisar separadamente algo para que se possa aprofundar nossa relação com o assunto, mas sempre voltando ao ambiente geral no qual está inserido, fazendo pontes com outros aspectos, culturais, sociais, espirituais e afetivos.
Não podemos esquecer que são as pessoas que produzem aquele material. Pessoas ligadas a um lugar e a um tempo, que possuem abordagens próprias, muitas vezes distintas das nossas. Por isso nosso olhar deve ser o da vontade genuína de conhecer, de se relacionar, de estabelecer trocas de idéias e sensações, com a maior abertura possível.
Atualmente estou fazendo mestrado em Cultura Árabe nas Letras Orientais da USP e meu tema é "A diversidade cultural da Síria através da música e da dança". Como é um assunto que está fervilhando na minha cabeça, começarei falando sobre a dança (sou professora de danças folclóricas e de dança do ventre) e música, sempre procurando relacioná-las com as pessoas e com o ambiente no qual são produzidas.
Espero que vocês me acompanhem nestas reflexões!