domingo, 29 de março de 2009

Dança oriental ou dança do ventre?


Dança oriental ou dança do ventre?











Quando falo dança oriental, as pessoas perguntam o que é, porque me refiro à dança do ventre assim. Ao mesmo tempo, anuncio que dou aulas de dança do ventre. Afinal, porque existem estas denominações?
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Precisamos voltar um pouco no tempo para começar nossa reflexão. Um nome pode estar carregado de história e significado...
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A chamada “dança do ventre” (a dança árabe mais conhecida no Ocidente) é uma atividade que sofreu rotulações não apenas por quem a assiste como também por quem executa.

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Começando por seu nome: O nome original desta dança é RAKS SHARQI, que significa dança oriental ou dança do leste. Este nome é uma provável alusão à origem desta dança, que muitos afirmam ter vindo da Índia (que está a leste) e caminhado até o Oriente Próximo. A denominação dança do ventre é ocidental e, se você falar para um árabe que faz dança “do ventre”, ele não vai saber o que é.
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Existem 2 versões para a existência deste nome aqui no Ocidente. A mais provável é que tenha surgido na França, quando o exército de Napoleão voltou do Egito. Tendo visto as bailarinas egípcias, os franceses, tão acostumados com a linguagem do ballet clássico (que trabalha mais as extremidades do corpo, mantendo as linhas do tronco estáticas), ficaram impressionados com os movimentos incessantes do tronco e a chamaram “danse du ventre”.
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Uma outra versão (comentada por Shokry Mohamed no livro La danza Mágica del Vientre) é a que, tendo os americanos entrado em contato com uma argelina que dançava provavelmente o “baladi” (nome popularmente dado a um dos ritmos árabes mais famosos, o masmudi sahir; bastante utilizado pelos camponeses), durante a Feira Internacional de Chicago, em 1888, também ficaram impressionados com os movimentos e fizeram um jogo de palavras com o “belly” (ventre), então: baladi dance = belly dance (dança do ventre).
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Seja como for, são estrangeiros dando nome a uma dança que não conhecem e que os impressiona naquilo que é muito diferente do que estão acostumados: o movimento do ventre (apesar de esta dança trabalhar todo o corpo). Neste exemplo vê-se que o objetivo é classificar o outro no que ele tem de diferente, e reduzi-lo a isso.
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Edward Said foi um grande pensador, que pesquisou a fundo a cultura árabe e suas relações com todo o sistema de valores ocidentais, e alertou para a existência de um sistema de idéias – chamado por ele de orientalista - que trata o Oriente da forma bastante pejorativa, o que leva a visões distorcidas e manipuladoras. Esta corrente de pensamento foi descrita em detalhes no livro Orientalismo - O Oriente como invenção do Ocidente.
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“O Oriente [do orientalista] não é
o Oriente tal qual ele é, mas
o Oriente tal como foi orientalizado” (Said, p.113)
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Ou seja, até o nome da dança foi inventado – modificado – pelos ocidentais. E isso aconteceu de forma sistemática e “científica”, principalmente após a Expedição Egípcia de Napoleão, como descreve Said no referido livro : “O alistamento feito por Napoleão de várias dúzias de ‘sábios’ para sua Expedição Egípcia é muito bem conhecido (...) A idéia dele era formar uma espécie de arquivo vivo para a expedição, na forma de estudos sobre todos os temas feitos por membros do Institut d’Égipte, que ele fundara.” (p. 89)
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A partir do contato dos soldados invasores com a dança oriental, começaram a surgir distorções: as mulheres que dançavam para eles eram profissionais de tabernas e cabarés, dançarinas de rua, que enfatizavam quase que apenas aspectos eróticos da dança, dado o ambiente em que se encontravam. Além disso, existia a visão do observador Ocidental, que procurava colocar nas mulheres que via - ou que imaginava - todas as suas fantasias, carências e preconceitos.
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Até hoje, existe uma visão fantasiosa do Ocidente em relação aos árabes, sua cultura, costumes, religião e estrutura social e, consequentemente, em relação às suas mulheres e sua dança.
Por outro lado, a comunidade árabe pode e deve se manifestar a respeito destas distorções, praticando bastante suas danças, divulgando e também alertando para os possíveis equívocos e desinformações. E os estudiosos dessa cultura também contribuem, no sentido de esclarecer o contexto em que a dança se dá, a real estrutura da sociedade e o papel da mulher e da arte dentro desta.
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Mesmo que a denominação continue sendo dança do ventre: quando anunciei que dava aulas de dança oriental, pensaram que era dança japonesa...! O que faz sentido também... Então continuo usando a denominação que todos conhecem, mas procurando fazer com que seu conteúdo, técnica e intenção estejam próximos dos elementos básicos da cultura e da mulher árabe.
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Uma denominação pode carregar um engano, mas utilizar apenas a denominação, sem conteúdo, não significa nada. Não adianta adotar o nome original e fazer uma dança totalmente fora do contexto original, não?
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