quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

A massificação cultural ameaça também a Síria

A massificação cultural ameaça também a Síria

Sou bailarina e pesquisadora das danças árabes e, como descendente de sírios, decidi viajar para lá para aprender a dança folclórica. Achei que na Síria, País que se resguardou mais, eu poderia encontrar a memória mais presente. Mas percebi que existe bastante influência da cultura ocidental, principalmente na capital. Talvez no interior as coisas sejam diferentes, mas como chegar num lugar, mulher ocidental, sozinha e desconhecida para eles, e falar: “oi, quero aprender essa dança com vocês”? Então fiquei estudando em Damasco, onde já tinha amigos e alguns contatos no meio artístico.

Na dança, essa influência se nota na excessiva mistura de balé clássico, jazz e balé moderno ao folclore. São modas ocidentais que vão sendo incorporadas; o mercado força os grupos a fazerem isso. Em geral, isso acaba despersonalizando e massificando a dança. O balé clássico, por exemplo, na sua busca da leveza e uso delicado das estremidades do corpo, não tem nada a ver com o povo e a cultura árabe, que é bem forte, emocional, ligada à terra.

Assim a dança do mundo todo vai ficar toda com a mesma cara, a ocidental e, mais provavelmente, a americana! Ninguém percebe que isso é dominação cultural e artística? Será balé moderno com música e figurino árabe, ou coreano, ou espanhol, mas sempre balé moderno, ou qualquer outra moda do momento. É o que “todo mundo está fazendo”. Só que o folclore é eterno, perpassa esses modismos e deveria se manter lá, vivo e sempre renovado, para ser uma fonte de inspiração, para quem faz e para quem vê, pois se reconhece naquilo como povo, que tem sua história, sua cultura e arte, seu jeito de se expressar e que é tão rico. Isso deveria ser motivo de orgulho, e não de vergonha. Somos diferentes e isso é uma grande riqueza, pois podemos ver e conhecer vários modos de ser e de se expressar, mas mantendo o nosso.

Mas hoje na Síria já é muito difícil encontrar alguém que conheça os vários tipos de dança de cada cidade, que queira e saiba ensinar, que ache isso importante. Também é difícil ter acesso às músicas, as lojas olham torto “ah, mas isso é muito antigo, você não quer ver o novo lançamento desse cantor pop?” . Não tenho nada contra o pop, mas substituir um pelo outro, invalidar o que é nativo, é uma atitude típica de País que foi colonizado por muito tempo: o que é nosso não tem valor, o do outro é sempre melhor. Já vimos (e ainda vemos) esse “filme” no Brasil, e agora acordamos para o perigo disso: as danças brasileiras estão sendo estudadas nas universidades e em vários grupos de trabalho. Tomara que a Síria acorde logo!

As pessoas tratam a memória como se fosse passado e não como memória viva e contínua. Como diz um amigo meu, a coisa mais revolucionária que temos é a Tradição, porque lida com a essência, é a fonte onde eu bebo para dar um passo adiante, e que vai sendo sempre atualizada. É diferente da conservação, que vê que “funcionou assim, então eu paro aqui”, nunca dá um passo adiante...

O diretor do grupo de dança folclórica no qual estagiei, o Ali, viveu esse dilema enquanto eu estive lá. Ele não me parecia convencido, mas sim, empurrado pelo “mercado”, o fantasma que ronda a arte hoje em dia, transformando-a em objeto de consumo. E o fato de ter uma pessoa, vinda de tão longe para conhecer a dança DELES, também o levou a questionar tudo isso e assim voltar a criar coreografias com movimentos bem árabes, mas nem por isso fáceis ou bobinhos. Ele dizia que o folclore deve se expressar por meio de gestos que representem o caráter árabe, que é emocional, passional, e tem o momento apaixonado, o guerreiro, o doce, etc, e que tudo isso deve estar presente desde que respeite o modo do árabe se movimentar que, com certeza, não é saltitando por aí. E assim criou peças folclóricas de muita riqueza e beleza!

Foi muita sorte encontrar esse diretor e também a Afaf , uma bailarina já madura, que aprendeu as danças como elas são, as atualizou, mas tenta sobreviver hoje dando aulas de aeróbica! Ela ficou feliz em saber que alguém ainda se interessava e me ensinou as danças de várias regiões, o porquê dos movimentos, a teatralidade, o caráter de cada lugar. E outro achado foi o Husam, um professor de música que me ensinou a característica da música de cada cidade, como diferenciar (eu achava esse aprendizado imprescindível, para não sair por aí dançando frevo com música gaúcha) e reconhecer. Todos esses contatos foram para mim como tesouros, encontrados depois de muita insistência e procura. Assim minha viagem não foi em vão e pude voltar com a certeza de que acompanhei processos bonitos e intensos de busca das raízes. Raízes que nos apoiam para podermos crescer, e não para ficarem lá, esquecidas e afundadas, inertes.

5 comentários:

  1. Linda trajetória, Marcia! Parabéns por esse olhar tão sensível!
    Beijo

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  2. Olá minha linda!!!!!
    Que saudade de você, adorei seu blog e vou participar com certeza.
    Muito bom seu texto, realmente é deprimente vermos uma cultura tão antiga se perdendo. Vc sabe q meu trabalho também é bem tradicional, tanto das danças gregas como da dança oriental, e o engraçado são os comentários q as vezes ouço após me apresentar. Tipo: "nossa, que bonito, parece dança do ventre"...é incrível como essa influência ocidental é tão grande q nós, que tentamos manter a nossa dança o mais pura possível, temos que classificar nossa dança como sendo outra, e a visão q as pessoas tem da dañça e da música árabe, é esse estilo "show bisness" completamente americanizado e ruim. O q me deixa mais triste é q essa ocidentalização faz com q as pessoas achem q a música e a dança árabe é ruim, sendo q é uma das mais belas artes.
    Bjsssssssssssssssss
    Cris

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  3. Que legal ter você por aqui, Cris!
    Esta questão da autenticidade ao se trabalhar com uma dança étnica é bem delicada e complexa mesmo.
    Quando uma cultura "migra" para outro lugar é natural que fique temperada com algumas expressões, atitudes e valores das pessoas deste lugar.
    Mas um tempero é diferente de uma mudança quase que radical, que é o que temos visto principalmente no caso da chamada dança do ventre.
    Neste caso não estamos mais falando só dos passos, mas da atitude, da intenção, do tônus muscular, do que o gesto significa.
    Vou postar algo sobre isso semana que vem. Daí conversamos mais.
    Beijo grande e ahlan ua sahlan!

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  4. Márcia,
    Vc fala a influência do ballet. Mas essa influência já vem da época do reda...E se pegarmos vídeos da antigos da Naima Akef ela já se aventurava em passos mais parecidos com o jazz. Nada disso é recente, não entendo pq tanta censura.

    Acho meio inacreditável pensar que Randa Kamel não seja uma grande representa da dança oriental, do ventre, como queiram chamar, apenas pq ela utiliza movimentos do jazz.
    Todas as danças em algum momento utilizaram ou utilizam fusões, pq a dv deveria ser imune?

    Quando o assunto é folclóre entendo que as coisas mudem de figura e acho o seu trabalho extremamente importante, já que ainda existe pouca informação sobre folclóre árabe no Brasil!

    Abs,
    Juliana

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  5. Juliana,
    Sei que não é recente a tendência de misturar passos de outras culturas. Precisamos lembrar que os movimentos e gestos "viajam" junto com as pessoas; sempre existiram trocas neste sentido. Mas neste caso, estou falando de um processo que vem acontecendo há algum tempo e que reflete algo maior.
    Aliás, não é porque algo acontece há muito tempo que passa a ser aceitável ou desejável. Se for assim, entramos de novo no “é assim mesmo”, “sempre fizemos isso”, sem que haja reflexão sobre o fato, conforme falei no texto da postagem.
    Tanto no texto postado como no comentário à mensagem da Cris (acima) deixo claro que uma dança não é, para mim, apenas a somatória de movimentos. Ela vai muito além disso, expressa uma idéia, uma intenção, diz muito sobre uma cultura. E minha crítica se refere ao fato de as pessoas do Oriente Médio terem passado a acreditar no discurso que diz que tudo o que vem deles é “atrasado”, precisa se “modernizar”, ou seja, deixar de ter características próprias e se adequar a um modelo importado.
    Não sou contra trabalhos que busquem a fusão, desde que se assumam como tal. E acredito que uma pessoa pode ser uma grande bailarina, até dançar maravilhosamente, mas não ser necessariamente representante de uma dança.
    Aliás, quem se aventuraria a se proclamar representante de uma dança?
    Um abraço,
    Marcia

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